Sinestesia

Jéssica Brandelero
2 min readSep 29, 2020

Os almoços na casa dela tinham cheiro de carne frita e gosto de batata doce. As panelas eram pequenas, mas várias. A mesa de compensado, a toalha floreada e os pratos duralex ficavam completos com talheres de cabos coloridos que sempre combinavam. Uma simplicidade bonita.

Saíamos da escola as 11h45, as 11h50 já estávamos largando as mochilas e indo lavar as mãos. Minha inveja infantil pela proximidade do trajeto logo desaparecia em meio a alegria de estar lá. Eu me sentia em casa mesmo que nada fosse como a casa que eu conhecia.

O pai dela era quem cozinhava, a mãe trabalhava fora. O homem magro, silencioso e de aparência triste pouco interagia comigo, mas eu não me importava, me sentia querida mesmo assim. Aprendia com eles que afeto podia ser tímido e se mostrar numa limonada fresca, feita só quando eu ia pro almoço.

O único estranhamento era o radinho de pilha que ficava ligado alguns minutos durante a refeição. A voz grave do radialista falava o nome e idade de cada um que tinha passado dessa pra melhor. Em nome dos familiares, dava informações sobre a hora e local do velório e enterro. Como se fosse um convite.

Acabadas as notas de falecimento, o pai levantava da mesa, colocava o prato na pia e ia até o pátio fumar. Ficava fora por tempo suficiente pra terminarmos de comer e lavarmos a louça. Então voltava com a cara mais triste do que de costume e ia pro quarto sestear. A vó, que já sabia, vinha da casa dos fundos nos fazer companhia.

Brincávamos com as barbies falando baixinho, só esperando pela hora de poder gritar e correr. Quando o pai finalmente acordava, arrumava a cama, tomava um copo d’água e saía pelo portão de ferro sem dizer nada. Não retornaria até a hora em que eu precisasse ir. E eu precisava ir antes que ele retornasse. Era a regra.

No caminho pra casa, meus pais me enchiam de perguntas sobre meu dia lá. Depois comentavam entre eles por onde andava e o que fazia o pai dela todas as tardes. Ora em tom de pena, ora em tom de censura. Mas a conclusão era sempre a mesma: apesar de tudo, era um homem bom. Eu seguia alheia, embalando minha sacola de limões e desejando que nosso trajeto não fosse assim tão longo.

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